sábado, 17 de julho de 2010

O Pitanguy de peruas umuaramense.

       Essa começa nos idos de 2007, pouco após Gertrudes vir a ser Zelazowski. Passávamos por Umuarama, eu e o Francisco, o dos Azevedos. O cambio fundido fez com que o Francisco chegasse ao sítio Guaritá pilotando feito um Ayrton Senna dos Volkswagens de época. Mas isto é uma outra conversa. O caso aqui, é que por motivo deste reparo executado por um bruxo automotivo já falecido, e nem portanto saudoso, fizemos pouso forçado por alguns dias a mais que o previsto no local. Francisco inclusive teve de deixar-nos por motivo de gravidez aguda, desta vez ele havia errado a trave!
        O caborjeiro era um dito especialista em veículos longevos. Homem de pouca estatura e muitas palavras. Devo dizer, mesmo arriscando incomodar os mortos, que nem todas eram propriamente agradáveis. Sujeito ranzinza que diagnosticou-nos um fêmur traseiro roto. O proprietário daquele distinto estabelecimento enciclopédico de conhecimentos ocultos, vulgo oficina, sugeriu-nos um funilortopedista que operava suas curandeirices nas redondezas. Ouvindo o nome indicado, nosso agradável mecânico replicou: ‘‘É uma merda’’! Interpelado sobre sua própria possível escolha o bom homem retrucou: ‘‘Tanto faz, são todos umas merdas’’!!!
        E com este cartão de visitas fui apresentado a Concilio Uliano, o mago da solda, e seu filho Serginho. Este último engessou Gertrudes com uma boa dose de solda Mig (seja lá o que isso queira dizer). Terminado o serviço contratado, os Ulianos partiam. Mas não o fizeram sem que fosse lançado o anzol: “Ah, como seria bonita esta perua toda reformadinha”. Meus olhos brilharam. Este sonho já me perseguia desde que minhas pupilas cruzaram aqueles faróis redondinhos pela primeira vez. Perguntei-lhes então o preço. Soube e desgostei. Gosto de me pensar, e assim fazer-me minimamente sovina com estes gentis homens da graxa. Pois mesmo desta forma, apropriam-se de muito do que tenho. Se fosse diferente, deveria fazer com que meus ganhos lhes fossem integralmente depositados, o que certamente pouparia algum trabalho a alguém.
        O fato é que tal pensamento não me soube abandonar tranqüilo. Mas o rumo então era São Paulo. O tempo urgia, e como isso não bastasse para protelar tal plástica, minha perua já havia gasto até ali, qualquer soma que eu pudesse pensar em destinar a tal fim. Havia eu então de montar empresa e fazer fortuna na capital para dar conta dos caros hábitos de minha querida kombosa.  Terminados os reparos, caímos na estrada. O câmbio recém trocado um tanto frouxo e vazando apenas meio litro de óleo por semana. Talvez por isso, além do mau uso do verbo, minhas memórias do falecido sortista dito entendido em autos antigos não sejam as melhores.
        E na cidade grande o tempo passou, bem como faz o tempo ali. Muito aconteceu, mas no quando em vez me passava aquela ceninha na cachola feito cheiro de comida em desenho animado, em que a fumacinha da torta nos pega pelo nariz. Era fechar os olhos e ver uma kombis novinha, com aqueles barulhinhos titilantes e pequenas estrelinhas brilhando ao redor. Os bancos, a pintura, os vidros por onde não mais entrariam enxurradas capazes de destruir meus aparelhos sonoros, o agradável odor interno que não mais faria com que me acreditassem um frentista que há pouco deixara a labuta por exalar derivados de petróleo em festinhas e célebres ocasiões da noite metropolitana.
        Cerca de setenta e duas luas se passaram desde o início da história quando eu e Gê decidimos que era tempo de gozar novos ares. Bahia era a meta. Mais precisamente uma comunidade alternativa de desenvolvimento espiritual. Eu havia descoberto recentemente, que maus feitos de minha alma eterna em uma guerra interestelar de há catorze mil anos me haviam colocado em maus lençóis espirituais. O jeito era meditar bastante e iniciar esta mitológica jornada.
Tratando-se da dupla que somos, o caminho mais lógico de São Paulo a Itacaré passaria por Curitiba, Umuarama, Bonito, Pirenópolis e Lençóis. Rumamos ao Paraná. Foi uma agradável jornada com visita a velhos compadres e comadres na capital, e até um ballet futebolístico encenado por marmanjos adamados em trajes de frutinhas, animado pelo Discotecário Bob, Nho Chiristiano e Vossa Duilieza. Lembro-me bem destes dias idos com Gertrudes lotada de tranqueiras que achariam morada em Umuarama. Ia um cacho de bananas por sobre a mudança como se avisasse que a carga não havia de interessar aos profissionais do crime. Uma espécie de mensagem fruto-subliminar que funciona tão bem quanto galinhas ou porcos, mas com bem menos desconforto para ambas as partes, ditas eu e as bananas.
        Ainda passamos por Guarapuava de visita breve a uns Zelazowskis que ali estabeleceram morada. O primo Sergei ouviu com grande decepção minha resoluta intenção de não compartilhar-lhe o pão líquido, sua alcunha predileta àquele agradável fermentado dourado de cevada que se consome bem fresco. Mas o caminho espiritual, a proximidade de 2012 e as guerras planetárias não me permitiam tais deslizes.
        Chegando ao nosso primeiro destino maior, às vésperas das festas, fui logo de visita ao velho Concílio, o mago da solda, também conhecido pelos íntimos por véinho boióla! Perguntei-lhe sobre prazos e preços, e ambas as respostas foram-me pouco agradáveis. Regateei um pouco e fiz diminuir o prazo, mas nem um centavo do preço! Pobre do tolo que não sabe o quão fácil é prometer prazos mais curtos, sem que isto seja viável, possível, ou sequer desejável pelo contratado. A verdade é que uma vez que seu carro está totalmente desmontado, você está completamente fodido. Ao menos em termos de moeda de barganha a respeito de datas e moedas.
        Mas ali, naquele momento, eu acreditava que a plástica de Gê nos tomaria dois meses, talvez um e meio com sorte, contando a partir do quinto de janeiro de 2009. Logo comecei a sofrer. Minha perua sendo toda depenada, suas pecinhas jogadas por todos os lados... Por baixo dos vidros agora retirados, via-se o quanto a ferrugem se havia fartado de sua frágil latinha. Os rombos deixados eram suficientemente largos para abrigar diversos dedos humanos. Um ar de cemitério.
        Então Uliano pai começou a cortar, rasgar, despedaçar. Macacos me mordam! O homem estava a unir peças alheias à composição de minha kombi, como placas rodoviárias, latas irreconhecíveis e deus sabe mais o que. Tudo feito com fogo. Lembrei-me de estudos antropológicos sobre a mítica figura do ferreiro. Ser mágico por seus feitos, que transita entre o mundo dos vivos e os domínios de Hades. Um pé na terra e outro no inferno. Por isso são com freqüência representados mancos. E bem que o véinho mancava um pouco mesmo.
        Dia após dia meu objeto de desejo tornava-se mais e mais hediondo. Chorava, não me fosse a grave esperança de melhores tempos vindouros. Nesta época, fui apresentado a Zum. Tapeceiro de mão cheia me garantiram. Bastava não estar com a cara igualmente repleta! Fiz-lhe confiança e paguei o preço. Por estas datas, também travei conhecência com Carlinhos, o “cabeça branca”, homem de vidros e borrachas. Risonho e gozador, com o costume de chamar as pessoas “meu peixe”.
        Os orçamentos multiplicavam-se na mesma medida em que aumentavam as cicatrizes em minha kombi. Minha preocupação com o tempo também se agravava. Eu a visitava três vezes ao dia. E não eram raros os momentos em que ninguém lhe assistia. Indagados sobre o porquê do serviço parado apesar de já bem atrasado, a resposta era como gravada: “Acabei de largar, estava trabalhando nela agorinha”!
Mas finalmente um dia iniciamos o processo de aplicar massa e lixar. Mal sabia eu que isto pode durar anos, décadas em alguns casos extremos. Há carros inclusive que passam o resto de suas vidas assim, eternamente inacabados. O trabalho era duro. “A perua é grande” diziam os moços. Ocorreram duas baixas. Homens pouco ousados que almejaram mais massa do que seus braços pudessem lixar. Foi quando apareceu Nego Drama, o mago da lixa. Não me lembro de seu nome, mas o apelido caiu-lhe porque chamava a todos desta forma. Reclamava um pouco, mas lixava como ninguém. Bastava abastecer-lhe o tereré e umas cervejinhas vez por outra. Para resolver os pepinos locomotivos da época, dei a Gertrudes uma irmãzinha de duas rodas. Ainda não foi batizada. Penso chamar-lhe Filomena. Encanta-me o apelido Filó!
E então Nego Drama lixou e lixou e lixou. Eu, que já me descabelava pela necessidade de partir, caí pra dentro. Deixei o posto de visitante e pus de vez um pé na bruxaria. E lixei e lixei e lixei. Pela sorte de que meu companheiro também fosse novato, às vezes nos parecia que nos faziam lixar aquele carro mais que o necessário, como se fosse um trote a aprendizes de feiticeiro.
Um dia então veio a pintura. Meus olhos não podiam crer quando o vermelho cereja 1969 começou a beijar ternamente a lateral de uma Gertrudes que qual a Fênix iniciava seu retorno das cinzas. Meus ouvidos se encantaram enquanto Serginho, aos poucos, fazia cantar a pistola de onde saíam as gotículas de um lindo branco lótus 1972 que contrastaria perfeitamente com o rubro, fazendo com que minha kombi saia e blusa voltasse cada vez mais à vida. Pura mágica!
Daí a frente tudo foi lindo. Lembro-me com carinho de nosso reencontro à passeio, rumo ao tapeceiro. Ainda desprovida de algumas peças, dirigi Gertrudes até o Zum com um alicate de pressão a guisa de volante. Era noite, não tínhamos vidros, piscas ou faróis. Nem o banco do motorista estava colocado. Sem lenço, luz ou documento. A exata sensação de cavalgar um puro sangue sem auxílio de sela, arreio ou cabresto! Ali, este grande vizir tapeceiro, que apesar de poucas e boas embaladas por seu vil costume de beber bem mais que o bom tom permitiria, fez-me emocionar com a perfeita superposição de bege claro e vinho vivo em todas as peças que eu havia cuidadosamente pré-desenhado. Veio então o som, a cama e o restante da mobília interna feitos por Robson, incrível mago artista auto-moveleiro indicado por Pica Pau, padrinho de Filó. Gê sentia-se sublime...
E um dia então, inacreditavelmente, éramos livres. Sentíamos forte o chamado da estrada. Saudades do vento nos cabelos e pára-brisas. Sairíamos cedo. Atrasei um pouco e depois, obviamente, tivemos problemas com uma fechadura e trocamos uma correia. Saímos as 17:00 hs, com ao menos umas 15 horas de estrada noite à dentro pela frente. Ainda assim, tudo estava certo. Verdade que foi menos agradável a troca de um pneu às cinco da manhã, com o macaco meio quebrado, em um acostamento estreito, do lado mais próximo a um tráfego pesado de caminhões buzinando. Eu que não mais me sei católico, me peguei balbuciando o pouco que me lembro de pais nossos e aves marias.
Mas ali estávamos nós. Prontos para dominar o mundo. Havíamos vencido algo que a pouco quase nos parecia derrotar. Tínhamos andado em terras que nos eram totalmente desconhecidas. Forjado peças que não mais se encontra. Reconstituído partes que já não faziam sentido em nossa dimensão vibracional. Lixado massas mais duras que rochas lunares. Pentelhado pessoas que pareciam impentelháveis. Encontrado detalhes em desmanches como que por milagre. Sorrido, chorado, reclamado e cantado junto a tantos juremeiros extraordinários. Algumas baixas, certa quantia de sangue e muito suor derramado, mas por um momento, a batalha universal era nossa. Neste átimo fugaz, faltaram-nos palavras para descrever alguns sentimentos. Entreolhamo-nos pelo painel, e nos deixamos acariciar pela delicada beleza do intangível.

(aqueles que por ventura estiverem visualmente curiosos, há fotos desta epopéia no site http://zelazowski.com.br/fotos/
 na seção "o processo cirúrgico" e em outras seções).

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