sábado, 17 de julho de 2010

Para o infinito e além.

Isso na verdade é um pedaço de uma newsletter da Zelazowski (marca de roupas que tive e para a qual a Gertrudes foi casa e loja) que escrevi e nunca mandei. Mas em tempos como este, em que Kombis queridas são roubadas inescrupulosamente, precisamos dar uma fuçada no baú e relembrar os bons momentos que tivemos juntos.
Vamos ao texto:

"...Tem por último, mas não de menor importância, a cirurgia plástica da Gê. Tudo indica que ela vai ficar linda, mas por hora é triste de olhar. Toda cheia de hematomas, remendos, sem seus queridos penduricalhos e badulaques.
Um amigo francês, ao saber da novidade, me perguntou se eu já não sentia mais desejo por essa velha perua, fiquei pensativo e não cheguei a conclusão alguma. Mas é assim a vida. Apesar dela ser minha contemporânea da boa safra de 74, o tempo normalmente judia mais de uma kombi luxo vermelho cereja e branco lótus, que de um ser humano caucasiano de pequena estatura e boa índole.
Isso fora o fator kilometragem...  Foi dia de festa há poucos, quando ela fez 8.888 km ao meu lado, e no mesmo instante 88.888 km de vida rodada e bandida. (Claro que isso é o que ela conta!!! Mas eu sei que esses carros mais idosos tem o sórdido costume de ter 99.999 km, e no km seguinte tornar-se um carro 0, só nao sei quantas vezes Gê já fez disso!!! Isso ela não conta).
Ainda assim, naquele km eterno eu estava radiante, invadiu-me a sensação de que estaríamos juntos pra sempre, uma espécie de transcendência temporal provavelmente causada pelos cinco oitos lado a lado, como uma sequência de infinitos. Derramei uma única lágrima, e segui meu caminho acelerando Gertrudes. Aquele simples e breve toque do sem fim,
já nos havia ceifado às garras do carrasco secular... "

O Pitanguy de peruas umuaramense.

       Essa começa nos idos de 2007, pouco após Gertrudes vir a ser Zelazowski. Passávamos por Umuarama, eu e o Francisco, o dos Azevedos. O cambio fundido fez com que o Francisco chegasse ao sítio Guaritá pilotando feito um Ayrton Senna dos Volkswagens de época. Mas isto é uma outra conversa. O caso aqui, é que por motivo deste reparo executado por um bruxo automotivo já falecido, e nem portanto saudoso, fizemos pouso forçado por alguns dias a mais que o previsto no local. Francisco inclusive teve de deixar-nos por motivo de gravidez aguda, desta vez ele havia errado a trave!
        O caborjeiro era um dito especialista em veículos longevos. Homem de pouca estatura e muitas palavras. Devo dizer, mesmo arriscando incomodar os mortos, que nem todas eram propriamente agradáveis. Sujeito ranzinza que diagnosticou-nos um fêmur traseiro roto. O proprietário daquele distinto estabelecimento enciclopédico de conhecimentos ocultos, vulgo oficina, sugeriu-nos um funilortopedista que operava suas curandeirices nas redondezas. Ouvindo o nome indicado, nosso agradável mecânico replicou: ‘‘É uma merda’’! Interpelado sobre sua própria possível escolha o bom homem retrucou: ‘‘Tanto faz, são todos umas merdas’’!!!
        E com este cartão de visitas fui apresentado a Concilio Uliano, o mago da solda, e seu filho Serginho. Este último engessou Gertrudes com uma boa dose de solda Mig (seja lá o que isso queira dizer). Terminado o serviço contratado, os Ulianos partiam. Mas não o fizeram sem que fosse lançado o anzol: “Ah, como seria bonita esta perua toda reformadinha”. Meus olhos brilharam. Este sonho já me perseguia desde que minhas pupilas cruzaram aqueles faróis redondinhos pela primeira vez. Perguntei-lhes então o preço. Soube e desgostei. Gosto de me pensar, e assim fazer-me minimamente sovina com estes gentis homens da graxa. Pois mesmo desta forma, apropriam-se de muito do que tenho. Se fosse diferente, deveria fazer com que meus ganhos lhes fossem integralmente depositados, o que certamente pouparia algum trabalho a alguém.
        O fato é que tal pensamento não me soube abandonar tranqüilo. Mas o rumo então era São Paulo. O tempo urgia, e como isso não bastasse para protelar tal plástica, minha perua já havia gasto até ali, qualquer soma que eu pudesse pensar em destinar a tal fim. Havia eu então de montar empresa e fazer fortuna na capital para dar conta dos caros hábitos de minha querida kombosa.  Terminados os reparos, caímos na estrada. O câmbio recém trocado um tanto frouxo e vazando apenas meio litro de óleo por semana. Talvez por isso, além do mau uso do verbo, minhas memórias do falecido sortista dito entendido em autos antigos não sejam as melhores.
        E na cidade grande o tempo passou, bem como faz o tempo ali. Muito aconteceu, mas no quando em vez me passava aquela ceninha na cachola feito cheiro de comida em desenho animado, em que a fumacinha da torta nos pega pelo nariz. Era fechar os olhos e ver uma kombis novinha, com aqueles barulhinhos titilantes e pequenas estrelinhas brilhando ao redor. Os bancos, a pintura, os vidros por onde não mais entrariam enxurradas capazes de destruir meus aparelhos sonoros, o agradável odor interno que não mais faria com que me acreditassem um frentista que há pouco deixara a labuta por exalar derivados de petróleo em festinhas e célebres ocasiões da noite metropolitana.
        Cerca de setenta e duas luas se passaram desde o início da história quando eu e Gê decidimos que era tempo de gozar novos ares. Bahia era a meta. Mais precisamente uma comunidade alternativa de desenvolvimento espiritual. Eu havia descoberto recentemente, que maus feitos de minha alma eterna em uma guerra interestelar de há catorze mil anos me haviam colocado em maus lençóis espirituais. O jeito era meditar bastante e iniciar esta mitológica jornada.
Tratando-se da dupla que somos, o caminho mais lógico de São Paulo a Itacaré passaria por Curitiba, Umuarama, Bonito, Pirenópolis e Lençóis. Rumamos ao Paraná. Foi uma agradável jornada com visita a velhos compadres e comadres na capital, e até um ballet futebolístico encenado por marmanjos adamados em trajes de frutinhas, animado pelo Discotecário Bob, Nho Chiristiano e Vossa Duilieza. Lembro-me bem destes dias idos com Gertrudes lotada de tranqueiras que achariam morada em Umuarama. Ia um cacho de bananas por sobre a mudança como se avisasse que a carga não havia de interessar aos profissionais do crime. Uma espécie de mensagem fruto-subliminar que funciona tão bem quanto galinhas ou porcos, mas com bem menos desconforto para ambas as partes, ditas eu e as bananas.
        Ainda passamos por Guarapuava de visita breve a uns Zelazowskis que ali estabeleceram morada. O primo Sergei ouviu com grande decepção minha resoluta intenção de não compartilhar-lhe o pão líquido, sua alcunha predileta àquele agradável fermentado dourado de cevada que se consome bem fresco. Mas o caminho espiritual, a proximidade de 2012 e as guerras planetárias não me permitiam tais deslizes.
        Chegando ao nosso primeiro destino maior, às vésperas das festas, fui logo de visita ao velho Concílio, o mago da solda, também conhecido pelos íntimos por véinho boióla! Perguntei-lhe sobre prazos e preços, e ambas as respostas foram-me pouco agradáveis. Regateei um pouco e fiz diminuir o prazo, mas nem um centavo do preço! Pobre do tolo que não sabe o quão fácil é prometer prazos mais curtos, sem que isto seja viável, possível, ou sequer desejável pelo contratado. A verdade é que uma vez que seu carro está totalmente desmontado, você está completamente fodido. Ao menos em termos de moeda de barganha a respeito de datas e moedas.
        Mas ali, naquele momento, eu acreditava que a plástica de Gê nos tomaria dois meses, talvez um e meio com sorte, contando a partir do quinto de janeiro de 2009. Logo comecei a sofrer. Minha perua sendo toda depenada, suas pecinhas jogadas por todos os lados... Por baixo dos vidros agora retirados, via-se o quanto a ferrugem se havia fartado de sua frágil latinha. Os rombos deixados eram suficientemente largos para abrigar diversos dedos humanos. Um ar de cemitério.
        Então Uliano pai começou a cortar, rasgar, despedaçar. Macacos me mordam! O homem estava a unir peças alheias à composição de minha kombi, como placas rodoviárias, latas irreconhecíveis e deus sabe mais o que. Tudo feito com fogo. Lembrei-me de estudos antropológicos sobre a mítica figura do ferreiro. Ser mágico por seus feitos, que transita entre o mundo dos vivos e os domínios de Hades. Um pé na terra e outro no inferno. Por isso são com freqüência representados mancos. E bem que o véinho mancava um pouco mesmo.
        Dia após dia meu objeto de desejo tornava-se mais e mais hediondo. Chorava, não me fosse a grave esperança de melhores tempos vindouros. Nesta época, fui apresentado a Zum. Tapeceiro de mão cheia me garantiram. Bastava não estar com a cara igualmente repleta! Fiz-lhe confiança e paguei o preço. Por estas datas, também travei conhecência com Carlinhos, o “cabeça branca”, homem de vidros e borrachas. Risonho e gozador, com o costume de chamar as pessoas “meu peixe”.
        Os orçamentos multiplicavam-se na mesma medida em que aumentavam as cicatrizes em minha kombi. Minha preocupação com o tempo também se agravava. Eu a visitava três vezes ao dia. E não eram raros os momentos em que ninguém lhe assistia. Indagados sobre o porquê do serviço parado apesar de já bem atrasado, a resposta era como gravada: “Acabei de largar, estava trabalhando nela agorinha”!
Mas finalmente um dia iniciamos o processo de aplicar massa e lixar. Mal sabia eu que isto pode durar anos, décadas em alguns casos extremos. Há carros inclusive que passam o resto de suas vidas assim, eternamente inacabados. O trabalho era duro. “A perua é grande” diziam os moços. Ocorreram duas baixas. Homens pouco ousados que almejaram mais massa do que seus braços pudessem lixar. Foi quando apareceu Nego Drama, o mago da lixa. Não me lembro de seu nome, mas o apelido caiu-lhe porque chamava a todos desta forma. Reclamava um pouco, mas lixava como ninguém. Bastava abastecer-lhe o tereré e umas cervejinhas vez por outra. Para resolver os pepinos locomotivos da época, dei a Gertrudes uma irmãzinha de duas rodas. Ainda não foi batizada. Penso chamar-lhe Filomena. Encanta-me o apelido Filó!
E então Nego Drama lixou e lixou e lixou. Eu, que já me descabelava pela necessidade de partir, caí pra dentro. Deixei o posto de visitante e pus de vez um pé na bruxaria. E lixei e lixei e lixei. Pela sorte de que meu companheiro também fosse novato, às vezes nos parecia que nos faziam lixar aquele carro mais que o necessário, como se fosse um trote a aprendizes de feiticeiro.
Um dia então veio a pintura. Meus olhos não podiam crer quando o vermelho cereja 1969 começou a beijar ternamente a lateral de uma Gertrudes que qual a Fênix iniciava seu retorno das cinzas. Meus ouvidos se encantaram enquanto Serginho, aos poucos, fazia cantar a pistola de onde saíam as gotículas de um lindo branco lótus 1972 que contrastaria perfeitamente com o rubro, fazendo com que minha kombi saia e blusa voltasse cada vez mais à vida. Pura mágica!
Daí a frente tudo foi lindo. Lembro-me com carinho de nosso reencontro à passeio, rumo ao tapeceiro. Ainda desprovida de algumas peças, dirigi Gertrudes até o Zum com um alicate de pressão a guisa de volante. Era noite, não tínhamos vidros, piscas ou faróis. Nem o banco do motorista estava colocado. Sem lenço, luz ou documento. A exata sensação de cavalgar um puro sangue sem auxílio de sela, arreio ou cabresto! Ali, este grande vizir tapeceiro, que apesar de poucas e boas embaladas por seu vil costume de beber bem mais que o bom tom permitiria, fez-me emocionar com a perfeita superposição de bege claro e vinho vivo em todas as peças que eu havia cuidadosamente pré-desenhado. Veio então o som, a cama e o restante da mobília interna feitos por Robson, incrível mago artista auto-moveleiro indicado por Pica Pau, padrinho de Filó. Gê sentia-se sublime...
E um dia então, inacreditavelmente, éramos livres. Sentíamos forte o chamado da estrada. Saudades do vento nos cabelos e pára-brisas. Sairíamos cedo. Atrasei um pouco e depois, obviamente, tivemos problemas com uma fechadura e trocamos uma correia. Saímos as 17:00 hs, com ao menos umas 15 horas de estrada noite à dentro pela frente. Ainda assim, tudo estava certo. Verdade que foi menos agradável a troca de um pneu às cinco da manhã, com o macaco meio quebrado, em um acostamento estreito, do lado mais próximo a um tráfego pesado de caminhões buzinando. Eu que não mais me sei católico, me peguei balbuciando o pouco que me lembro de pais nossos e aves marias.
Mas ali estávamos nós. Prontos para dominar o mundo. Havíamos vencido algo que a pouco quase nos parecia derrotar. Tínhamos andado em terras que nos eram totalmente desconhecidas. Forjado peças que não mais se encontra. Reconstituído partes que já não faziam sentido em nossa dimensão vibracional. Lixado massas mais duras que rochas lunares. Pentelhado pessoas que pareciam impentelháveis. Encontrado detalhes em desmanches como que por milagre. Sorrido, chorado, reclamado e cantado junto a tantos juremeiros extraordinários. Algumas baixas, certa quantia de sangue e muito suor derramado, mas por um momento, a batalha universal era nossa. Neste átimo fugaz, faltaram-nos palavras para descrever alguns sentimentos. Entreolhamo-nos pelo painel, e nos deixamos acariciar pela delicada beleza do intangível.

(aqueles que por ventura estiverem visualmente curiosos, há fotos desta epopéia no site http://zelazowski.com.br/fotos/
 na seção "o processo cirúrgico" e em outras seções).

quarta-feira, 7 de julho de 2010

SP-BA uma viagem mágica...

Já na Bahia, quase Corumbau ainda Prado, encasquetei relatar. Hão de existir eles a chamar-me ingênuo por ainda confiar em minha parceira. Outros podem sentir certa decepção ou raiva, podendo xingá-la nomes. Alguns ainda direcionar-me-ão estes nefastos sentimentos, alegando-me irresponsável por expô-la a tais esforços. Pouco importa, conto mesmo assim:
Era domingo, véspera de feriado, saíamos com a cidade vazia, rumo Rio. Eu, com aquele sorriso nos lábios e na alma, como sempre me deixa a perspectiva da estrada. Ela, toda cheia. Um tanto de si, tão linda... Mas bem mais das minhas quinquilharias, máquinas e plantas, incluindo sua irmã mais nova, que nem nome tem ainda, mas já sabe andar em duas rodas enquanto não lhe crescem mais. Parecíamos um recém-casal. Fortes e Confiantes. Rodando veloz, pra lá dos 80 amiúde. Uma delícia... Avistamos inclusive uma parente de Gê. Saia verde, linda! Quase tomo uma espelhada por buziná-la. Perua ciumenta!
Foram quatro ótimos dias na dita maravilhosa. Ao menos para mim. Praia, samba, chopes, risadas, bolinho de bacalhau e o caralho. Gê ficou na garagem. Talvez esse tenha sido meu erro. Andei por carros diversos, táxis até... Uma verdadeira orgia sobre rodas.
Cedo saímos na sexta. Projeto dormir em Itaúnas. Íamos bem, o radio tocava Céu, quando beirando Vitória, tivemos nossa primeira derrota. Ao menos de natureza rodoviária. Gê nunca havia em nosso tempo se entregado a estrada alguma. Uma barulheira pra lá de bizarra. O acelerador, tão fogoso até então, tornara-se o clitóris de uma frigida. Parei, me sabendo fodido... Gertrudes, ciumenta o quanto for, nada tem de fiel. E, talvez dando troco à minha farra carioca, ou por simples luxúria, percebi que minha perua clamava por carinhos experientes. Carícias do tipo que só um mecânico de outras terras pode proporcionar. Aqui dentro da cachola, eu só fazia me perguntar: Por quanto tempo esse canalha esbaldar-se-ia nas intimidades da minha Gertrudes. E, também, quanto de minhas parcas economias isso haveria de me custar!
Com muito esforço nos arrastamos ruidosamente até um mecânico nas cercanias. O rapaz abriu os ouvidos, bati a chave, ele abriu então os olhos. Mau sinal... Pelo infame grunhido que vinha das entranhas de minha querida kombi, o rapaz nos disse não ser a pessoa indicada para nos ajudar, em ambos os domínios necessários. Primeiro no da reconstrução do âmago do paciente (também conhecido como “retífica de motores”). E, após pigarrear, segundo, o da geriatria móvel. Entreolhamo-nos deveras constrangidos com a falta de tato de nosso interlocutor, mas relevamos em breve. Pois o jovem parecia conhecer intimamente “o homem” para tal situação. Muito nos surpreendeu que seu próximo feito fosse gritar Fabrício. Do milhão e meio de possíveis metros quebráveis a rodar nesta jornada, havíamos parado a cerca de 300 do cara!
Atravessa a rua então um rapagão bem apessoado. Forte, com a barba por fazer e todo sujo de graxa. Tive aqui meu momento de despeito. Parecia saber do que falava. Muitos de meus cruzeiros estavam irrevogavelmente prestes e lhe seguir. Mas eu me preocupava mais ainda com o tempo. Estávamos em Cariacica, grande Vitória. Cidade singela e pacata, com o pequeno inconveniente de apresentar o maior número de homicídios por habitante de nosso país. Eram quinze horas de uma sexta feira. Em ocasião anterior, estes mesmos serviços nos tomaram, a mim e a meu irmão Francisco dos Azevedos, pouco mais de três semanas. Quando o rapaz me diz então ser adventista, e portanto não poderia trabalhar no dia seguinte, por este ser o do Senhor. Faltou-me o ar...
Recuperando-me, perguntei desanimado sobre acomodações de preços módicos e bons tratos. Coçou a cabeça e disse o óbvio. Morava ali, porque conheceria hotéis? Mas a pergunta pareceu colocar-lhe em meu lugar. Coçou outras partes, e disse decido: Vamos tentar fazer pra hoje! Hoje??? Como??? Caralho!!! Isso é possível?!! Foi. Não vou me demorar com detalhes torníferos ou de cabeçotes economizados. Só digo que alguém gostou quando nosso novo amigo e mais dois jovens puseram-se em simultâneo a trabalhar habilmente suas peças. Muitos pensam que a mecânica de motores tenha algo de científico. Garanto que não. Feitiçaria pura. Com seus rituais e oferendas. Perguntar por que um motor quebrou, é como perguntar o porquê dela ter ido. Sempre se pode apontar alguns possíveis motivos. Mas a causa certa, jamais. Seis horas depois e o resgate pago, estávamos livres. Cruzamos uma Vitória noturna com um gosto diferente de todas as anteriores. Até achei bonito. Uma hora mais tarde, dormíamos tranqüilos no Hotel Califórnia.
Cedo na estrada, todo barulho era um sobressalto. Depois aos poucos, veio certa tranqüilidade. Até furar o pneu e eu me lembrar de não haver providenciado um calço, necessário ao uso de um novo macaco recém-adquirido. Nosso primata biônico anterior havia falecido. Fiz uma oração à Padim Macgayver Ciço e me veio a visão do calço, na forma de estraçalhos de pneu de caminhão. Dois litros de suor e alguns quilômetros mais tarde, procurávamos um borracheiro, sem saber que encontraríamos outro feiticeiro. Ele, o borracha como seus amigos chamavam, também conhecia seu ofício. A câmara de ar que eu precisava ele não tinha não, e nem ninguém teria... Tentamos então encher o pneu sem câmara. Não dava, tinha folga. Ele então tentou por fogo em álcool dentro do pneu. Seguido à explosão e labaredas esvoaçantes, ligou o compressor. Nada. Pôs então jornal molhado entre a borda e a roda. Encheu. Depois esvaziou, mas me bastou para chegar ao destino. Grande mago!
Ao parar em um posto, notei que a partida demorava estranhamente. Mas me interrompe o momento de incerteza um senhor que pedia carona pequena. Não sei bem se pelos acontecidos, por muita carga ou vontade esparsa, meu instinto hippie não estava a mil nesta viagem. Mas concordei. Acenei com a cabeça diversas vezes para responder palavras absolutamente incompreensíveis. Chegamos. Desce o tiozinho e diz: Obrigado seu menino! Deus lhe encomparse! Nunca havia pensado em Deus como possível comparsa... Mas me foi agradável e divertido. Logicamente, algumas partidas mais tarde, a resposta elétrica estava cada vez mais longe. Era boa a feitiçaria da retífica Líder. Mas não era perfeita. Esta questão porém, foi facilmente resolvida pelo terceiro e último dos autoxamãs que encontramos, o mago elétrico gentil. Por precaução dormi em Prado, sem muita vontade de pegar duas horas de terra durante a noite. Umas poucas cervejinhas animaram-me a ponta da pena e vaselinaram-me o verbo.
Hoje já me encontro em Corumbau. Chove e me vejo em meio a receitas culinárias, novas pessoas e lindas praias. Grande mora em mim o respeito pelos herméticos esotéricos automobilísticos. Maior ainda pelos anjos e gentes queridas cujos desejos me protegem e empurram adiante. Obrigado a todos, e viva o invisível!!!